Sei de uma criatura antiga e formidável, <br />Que a si mesma devora os membros e as entranhas, <br />Com a sofreguidão da fome insaciável. <br /> <br />Habita juntamente os vales e as montanhas; <br />E no mar, que se rasga, à maneira de abismo, <br />Espreguiça-se toda em convulsões estranhas. <br /> <br />Traz impresso na fronte o obscuro despotismo. <br />Cada olhar que despede, acerbo e mavioso, <br />Parece uma expansão de amor e de egoísmo. <br /> <br />Friamente contempla o desespero e o gozo, <br />Gosta do colibri, como gosta do verme, <br />E cinge ao coração o belo e o monstruoso. <br /> <br />Para ela o chacal é, como a rola, inerme; <br />E caminha na terra imperturbável, como <br />Pelo vasto areal um vasto paquiderme. <br /> <br />Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo <br />Vem a folha, que lento e lento se desdobra, <br />Depois a flor, depois o suspirado pomo. <br /> <br />Pois esta criatura está em toda a obra; <br />Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto; <br />E é nesse destruir que as forças dobra. <br /> <br />Ama de igual amor o poluto e o impoluto; <br />Começa e recomeça uma perpétua lida, <br />E sorrindo obedece ao divino estatuto. <br />Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.<br /><br />Joaquim Maria Machado de Assis<br /><br />http://www.poemhunter.com/poem/uma-criatura/