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Luís Vaz de Camões - Sôbolos rios que vão

2015-07-22 2 Dailymotion

Luís Vaz de Camões - Sobolos rios que vao <br /> <br /> <br />Sôbolos rios que vão <br />Por Babilônia, me achei, <br />Onde sentado chorei <br />As lembranças de Sião <br />E quanto nela passei. <br /> <br />Ali, o rio corrente <br />De meus olhos foi manado; <br />E, tudo bem comparado, <br />Babilônia ao mal presente, <br />Sião ao tempo passado. <br /> <br />Ali, lembranças contentes <br />Na alma se representaram; <br />E minhas cousas ausentes <br />Se fizeram tão presentes <br />Como se nunca passaram. <br /> <br />Ali, depois de acordado, <br />Co rosto banhado em água, <br />Deste sonho imaginado, <br />Vi que todo o bem passado <br />Não é gosto, mas é mágoa. <br /> <br />E vi que todos os danos <br />Se causavam das mudanças <br />e as mudanças dos anos; <br />Onde vi quantos enganos <br />Faz o tempo às esperanças. <br /> <br />Ali vi o maior bem <br />Quão pouco espaço que dura; <br />O mal que depressa vem, <br />E quão triste estado tem <br />Quem se fia da ventura. <br /> <br />Vi aquilo que mais vale, <br />Que então se entende milhor, <br />Quando mais perdido for; <br />Vi ao bem suceder mal <br />E, ao mal, muito pior. <br /> <br />E vi com muito trabalho <br />Comprar arrependimento; <br />Vi nenhum contentamento, <br />E vejo-me a mim, que espalho <br />Tristes palavras ao vento. <br /> <br />Bem são rios estas águas <br />Com que banho este papel; <br />Bem parece ser cruel <br />Variedade de mágoas <br />E confusão de Babel. <br /> <br />Como homem que, por exemplo, <br />Dos transes em que se achou, <br />Despois que a guerra deixou, <br />Pelas paredes do templo <br />Suas armas pendurou: <br /> <br />Assim, depois que assentei <br />Que tudo o tempo gastava, <br />Da tristeza que tomei, <br />Nos salgueiros pendurei <br />Os órgãos com que cantava. <br /> <br />Aquele instrumento ledo <br />Deixei da vida passada, <br />Dizendo: — Música amada, <br />Deixo-vos neste arvoredo, <br />À memória consagrada. <br /> <br />Frauta minha que, tangendo, <br />Os montes fazíeis vir <br />Pra onde estáveis correndo, <br />E as águas, que iam descendo, <br />Tornavam logo a subir, <br /> <br />Jamais vos não ouvirão <br />Os tigres, que se amansavam; <br />E as ovelhas que pastavam, <br />Das ervas se fartarão <br />Que por vos ouvir deixavam. <br /> <br />Já não fareis docemente <br />Em rosa tornar abrolhos <br />Na ribeira florescente; <br />Nem poreis freio à corrente, <br />E mais se for dos meus olhos. <br /> <br />Não movereis a espessura, <br />Nem podereis já trazer <br />Atrás de vós a fonte pura, <br />Pois não pudestes mover <br />Desconcertos da ventura. <br /> <br />Ficareis oferecida <br />À Fama, que sempre vela, <br />Frauta de mim tão querida; <br />Porque, mudando-se a vida, <br />Se mudam os gostos dela. <br /> <br />Acha a tenra mocidade <br />Prazeres acomodados, <br />E logo a maior idade <br />Já sente por pouquidade <br />Aqueles gostos passados. <br /> <br />Um gosto que hoje se alcança, <br />Amanhã já o não vejo: <br />Assim nos traz a mudança <br />De esperança em esperança <br />E de desejo em desejo. <br /> <br />Mas, em vida tão escassa, <br />Que esperança será forte? <br />Fraqueza de humana sorte, <br />Que quanto da vida passa <br />Está recitando a morte! <br /> <br />Mas deixar nesta espessura <br />O canto da mocidade! <br />Não cuide a gente futura <br />Que será obra da idade <br />O que é força da ventura. <br /> <br />Que idade, tempo, o espanto <br />De ver quão ligeiro passe, <br />Nunca em mim puderam tanto, <br />Que, posto que deixe o canto, <br />A causa dele deixasse. <br /> <br />Mas em tristezas e nojos, <br />Em gosto e contentamento, <br />Por sol, por neve, por vento, <br />Tendré presente á los ojos <br />Por quien muero tan contento. <br /> <br /> <br />Órgãos e frauta deixava, <br />Despojo meu tão querido, <br />No salgueiro que ali estava, <br />Que pera troféu ficava <br />De quem me tinha vencido. <br /> <br />Mas lembranças da afeição <br />Que ali cativo me tinha, <br />Me perguntaram então: <br />Que era da música minha <br />Que eu cantava em Sião? <br />Que foi daquele cantar <br />Das gentes tão celebrado? <br />Porque o deixava de usar? <br />Pois sempre ajuda a passar <br />Qualquer trabalho passado. <br /> <br />Canta o caminhante ledo <br />No caminho trabalhoso, <br />Por entre o espesso arvoredo; <br />E de noite o temeroso, <br />Cantando, refreia o medo. <br /> <br />Canta o preso docemente, <br />Os duros grilhões tocando; <br />Canta o segador contente, <br />E o trabalhador, cantando, <br />O trabalho menos sente. <br /> <br />Eu, que estas cousas senti <br />Na alma, de mágoas tão cheia, <br />Como dirá, respondi, <br />Quem alheio está de si <br />Doce canto em terra alheia? <br /> <br />Como poderá cantar <br />Quem em choro banha o peito? <br />Porque, se quem trabalhar <br />Canta por menos cansar, <br />Eu só descansos enjeito. <br /> <br />Que não parece razão <br />Nem parece cousa idônea, <br />Por abrandar a paixão, <br />Que cantasse em Babilônia <br />As cantigas de Sião. <br /> <br /> <br />Que, quando a muita graveza <br />De saudade quebrante <br />Esta vital fortaleza, <br />Antes moura de tristeza <br />Que, por abrandá-la, cante. <br /> <br />Que, se o fino pensamento <br />Só na tristeza consiste, <br />Não tenho medo ao tormento: <br />Que morrer de puro triste, <br />Que maior contentamento? <br /> <br />Nem na frauta cantarei <br />O que passo e passei já, <br />Nem menos o escreverei; <br />Porque a pena cansará <br />E eu não descansarei. <br /> <br />Que, se a vida tão pequena <br />Se acrescenta em terra estranha, <br />E se Amor assim o ordena, <br />Razão é que canse a pena <br />De escrever pena tamanha. <br /> <br />Porém se, pera assentar <br />O que sente o coração, <br />A pena já me cansar, <br />Não canse pera voar <br />A memória em Sião. <br /> <br />Terra bem-aventurada, <br />Se, por algum movimento, <br />Da alma me fores mudada, .......

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